artigo
Ensaio sobre o Real na Psicanálise
resumo
Partilha-se aqui, numa transcrição, a 6ª Conferência, de 13 de Julho de 2018, proferida por José Pereira Neves, no âmbito do Ciclo de Conferências PsiRelacional (2018), Associação de Psicanálise Relacional, sobre a articulação do tema do "real" na teoria psicanalítica. O título da comunicação é "Ensaio sobre o Real da Psicanálise: 2018 à conversa com “O Projecto” de 1895". Esta Conferência teve a Presidência de Mesa da Dra. Fernanda Branco e o Comentário formal do Dr. David Figueirôa.
Ensaio sobre o Real da Psicanálise: 2018 à conversa com “O Projecto” de 1895
(2018) Conferência
I. Introdução
Talvez desde o seu início, a Psicanálise se tenha sempre ligado àqueles que a podiam sustentar, técnica e teoricamente. Mesmo que inicialmente tenha sido necessário desligar-se da medicina, a psicanálise sempre procurou uma conexão ao real físico. Com Freud, e todos os médicos que se lhe seguiram, mesmo até à psiquiatria biológica, e, a posteriori com todas as tentativas de tornar a psicologia uma ciência exacta. Em todos estes enquadramentos vemos uma preocupação de base. Ancorar a teoria psicanalítica no campo do real, necessariamente o fisiológico.
A Psicanálise tornou-se cada vez mais complexa e, para sua defesa, afastou-se da exatidão da mensuração das coisas físicas e materializadas. Como medir uma defesa? Como classificar a quantidade de mecanismo projectivo? A Psicanálise defendeu-se qualificando. As ciências ditas exactas defenderam-se quantificando. Porque para qualificar é preciso entrar no campo da subjetividade. E para quantificar é preciso ter objeto: físico, observável, mensurável e conhecido.
Neste trabalho tentaremos articular a ideia de que este movimento defensivo da Psicanálise Freudiana se escudar qualificando foi apenas necessário dado que Sigmund Freud se encontrava perante uma pena e uma folha em branco nos finais do século XIX, inícios do século XX. Adicionalmente tentaremos articular algumas ideias actuais que se ligam intimamente, na leitura que fazemos, com aquilo que pensamos ser a intencionalidade original freudiana na sua relação com a criação da Psicanálise, mesmo antes desta se ter sistematizado na mente do autor.
Cada vez mais, com o desenvolvimento expansivo e veloz da Psicanálise, pulsional, objectal, relacional, intersubjectiva, talvez sem saber, a procura da Psicanálise pela verdade do sujeito, pela sua realidade, tenho feito dela, por excelência uma das primeiras ciências quânticas. Tentemos esclarecer. Talvez pelas suas características, a Psicanálise tenha sido sempre uma ciência sem objeto observável. Não porque ele não exista, mas porque, de acordo com o que sabemos hoje das ciências quânticas, ora existe ora não existe. Sobre este ponto versará aquilo que aparece hoje como o real da Psicanálise e, também, como tendência de estudo em Psicanálise Relacional e Intersubjectiva. Hoje somos inevitavelmente atirados, técnica e teoricamente, para fora de nós próprios, para o campo intersubjectivo e, ainda, para as reflexões infindáveis sobre a subjectividade no quadro transferocontratransferencial. Ou seja, estamos dentro e fora de nós, no outro e em nós ao mesmo tempo, estamos e não estamos a todo o momento nas nossas vidas e nas nossas profissões. Somos, pela própria definição psicanalítica articulada com a ciência contemporânea, seres quânticos.
Tentaremos demonstrar agora um dos nossos propósitos aqui hoje. O de oferecer uma leitura de como Freud tentava constituir a sua ciência psicanalítica como quântica em 1895 com o seu Projecto para uma Psicologia Científica. Não é nosso propósito aqui hoje o de elaborar uma revisão exaustiva de O Projecto para uma Psicologia Científica e, muito menos, o de construir um qualquer tratado teórico sobre Psicanálise. É sim o nosso propósito o de questionar pressupostos e o de colocar questões. Boas questões e más questões, desde que promovam pensamento e afecto na comunidade psicanalítica e nos seus afiliados.
II. Uma conversa diferente sobre “Uma Psicologia Científica”
Materializando aquilo a que nos propomos, e relembrando aqui as suas publicações ditas pré-psicanalíticas, Freud parece organizar o seu pensamento sobre a sua 1ª Tópica a partir do seu conhecimento sobre a comunicação entre neurónios, isto é, da conceptualização de neurónio, do seu espaço adjacente extracelular, barreira de contacto ou espaço entre neurónios, e da célula neuronal seguinte, de acordo com o desenvolvimento primitivo ainda dos estudos histológicos da altura e da própria concepção do funcionamento do mundo nos anos 90 do século XIX.
Iniciemos então a nossa viagem a 1895, quando Freud organizava a conceptualização de uma estrutura celular que envia informação à estrutura seguinte através de um espaço entre elas, a partir dos trabalhos científicos da altura. Esta parece-nos ser a estrutura conceptual precursora da sua 1ª Tópica alguns anos mais tarde. Esta barreira de contacto intercelular, para Freud, poderia apresentar um problema de filtragem dessa mesma energia, quantificando-a aquando da sua transição de um lado para outro e de um estado energético para outro. Em adição, Freud apresenta-nos aquilo que ele conceptualiza como a capacidade diferenciadora da membrana. Isto é, a sua capacidade de filtrar essa energia/informação. Freud avança que a barreira de contacto deixa passar alguma quantidade de energia e não outra. Desta forma, o seu passo seguinte é o de teorizar que esta informação reservada ou impedida de passar este espaço entre células constituiria memória.
Daqui podemos articular algumas associações teóricas. A partir de Freud mas, e acima de tudo, para além de Freud. Até porque há 120 anos atrás apenas se iniciava a observação estrutural das células. Por exemplo, o termo “sinapse” aparece apenas dois anos mais tarde em 1897. Também o conhecimento sobre a realidade e a física dos materiais e a física das coisas mais microscópicas era bastante deficitário. Freud apresenta-nos uma imagem de “qualquer coisa” que uma célula quer transmitir à seguinte mas que não é possível por algum impedimento estrutural. Esta informação, sob a forma de energia, fica retida nesta mesma célula, não podendo ser transmitida ou descarregada na seguinte, de forma total ou parcial. Este processo de bloqueio ou reserva de energia constitui memória. Neste caso, seguindo a intuição de Freud e os estudos conhecidos hoje de como os neurónios de facto funcionam, estamos a falar de uma memória orgânica, ao nível intra- e extracelular. Isto é, uma determinada organização energética fica literalmente retida na célula ou é disparada apenas parcialmente para a seguinte o que, teoricamente para Freud, formaria a organização estrutural de uma memória primitiva.
A partir desta constituição conceptual, se avançarmos para estruturação da 1ª Tópica freudiana, podemos ver que também nela existem duas estruturas com um filtro diferenciador que as liga e separa ao mesmo tempo. Um espaço onde é dada passagem a algumas coisas e outras permaneceriam retidas. Este espaço intercelular é claramente o percursor teórico do edifício psicanalítico. Ele mesmo fundado na ideia que existe, por um lado um espaço ao qual temos acesso, onde a informação está e circula e, por outro, um espaço onde isso não acontece. Este outro lugar seria um espaço onde as coisas que lá estão se encontram parcializadas, distorcidas precisamente porque lhes foi vedado um caminho directo precisamente pela sua essência energética. Seria, na nossa leitura, esta ideia de espaço intercelular neuronal que para Freud representaria um pré-consciente. A estrutura celular que pulsa e transmite energia representaria o processo inconsciente. E o processo consciente seria a segunda estrutura celular que recebe a energia parcializada, diferenciada, onde a mesma se organiza de forma distorcida e filtrada.
Freud aponta que as células permeáveis serviriam a percepção enquanto que as impermeáveis “cheias com resistência, e contendo a energia, serviriam como veículos da memória e dos processos psíquicos em geral.” (p. 300). Na concepção de Freud as características essenciais da memória, na relação com estruturas celulares neuronais, são que estas "são permanentemente alteradas pela passagem de uma excitação" (p. 300), ou seja, as suas barreiras de contacto são constantemente transformadas pela passagem de energia pela consequência da alteração do seu estado. Freud liga este dado à capacidade das barreiras de contacto se tornarem cada vez mais capazes de condução de energia, permeáveis, e portanto cada vez mais semelhantes aos neurónios de disparo livre. É interessante como este dado se liga com a ideia de Fairbairn de que saúde mental seria um estado em que o sujeito seria capaz de lidar progressivamente de uma forma mais desimpedida com o objeto real. Freud, desta forma, enfatiza o conceito de facilitação desta barreira de contacto.
É interessante também como a mente, inicialmente para Freud, não só está em contacto permanente com a realidade, como tenderia para uma relação cada vez estreita e desimpedida com a mesma e com a experiência dela decorrente. Ou seja, a ideia de cura psicanalítica por excelência: o de tornar o inconsciente consciente. Também podemos verificar que a ideia conceptual de “excitação” e “excitabilidade” nos remete aqui, em 1895, muito mais para uma dinâmica energética, materializada, do que para uma metáfora ou abstracção mais ou menos teórica. A “excitação” é mesmo energia que circula de célula em célula. Ou seja, uma quantidade de matéria, carregada de informação, que circula numa substância orgânica viva. Dizendo outra vez: A “excitação” é mesmo energia que circula de célula em célula. Ou seja, uma quantidade de matéria, carregada de informação, que circula numa substância orgânica viva. Qual a qualidade desta energia do ponto de vista físico e orgânico? Que características tem a informação que nela circula? Tudo questões que, até ao momento, nos parece, têm transcendido a Psicanálise das abstracções e das metáforas.
Nesta altura, e no seguimento da sua lógica intuitiva, ainda no Projecto para uma Psicologia Científica, implicitamente Freud introduz o que parece ser uma ideia de estrutura mental materializada e ancorada na rede neuronal e no seu fluxo energético celular. Citando Freud, "Se supuséssemos que todas as barreiras de contacto impermeáveis oferecessem a mesma resistência ou facilitassem a passagem de energia da mesma forma, as características da memória não emergiriam. Porque, na relação com a passagem de uma excitação, a memória evidentemente detém um enorme potencial na determinação e direcção do seu caminho, e sem memória, não seria possível ver porque um caminho neuronal seria o preferido, em detrimento de outro. Neste sentido podemos afirmar mais corretamente que memória é representada pelas diferenças nas facilitações entre os neurónios impermeáveis.”. Nesta passagem podemos ver a ideia, em Freud, de que ele mesmo visualiza uma rede neuronal que permite a passagem de energia, a parcializa ou a bloqueia por alguma razão e, mais do que isso, uma rede neuronal onde existem diferenças significativas entre caminhos neuronais, uns que oferecerão mais resistência e outros que oferecerão um caminho mais facilitado ao fluxo energético ou de informação. Mais claramente dito pelo próprio, “Todo o neurónio terá que se presumir estar ligado a um conjunto de caminhos de conexão com outros neurónios - isto é, várias barreiras de contacto. Disto depende a possibilidade de escolha [itálico de Freud] que é determinada pela facilitação.” (p. 301). Aqui vemos que Freud desenha na sua mente um esboço de uma rede psíquica de campo aberto, em fluxo, diferenciada, em contacto com a experiência, consoante a sua intensidade e as suas qualificações várias. E, em adição, como memória para Freud se constitui aqui como informação materializada no campo somático. Tão materializada que é critério de escolha para um caminho neuronal em detrimento de outro. Dito de uma outra forma: uma mente quântica. Usamos aqui a terminologia mente quântica para observar a sensibilidade de Freud, a partir do pouco que conhecia na altura sobre funcionamento celular e mental, e atingir o nosso propósito neste ensaio: o de introduzir que a constituição e construção da Psicanálise é feita por Freud partindo do corpo e do seu órgão mais complexo, o cérebro, para chegar a uma concepção de mente ancorada no fluxo energético que corre dentro e entre células e pelo corpo do sujeito. Uma ciência constituída pelo próprio, na sua origem, como quântica. Freud, aliás, introduz isto mesmo quando expressa a sua frustração aquando da sua tentativa de incursão teórica sobre as características destas barreiras de contacto. Embatendo de frente com o facto de se encontrar em 1895 e não haver provas físicas para o que proponha a si próprio, Freud exclama que, no seu presente, a única prova seria tentar realizar uma abordagem darwiniana.
Uma outra nota que aqui deixamos, é a que nos apresenta Freud, com a sua ideia original de função de descarga, aqui vista, inicialmente como processo físico, energético, material. Ouçamos então através da sua pena e papel (p.306): “Aqui, adicionalmente, temos um vislumbre de uma tendência que poderá talvez governar a construção do sistema nervoso, a partir de vários sistemas: um processo sempre em marcha de contenção da quantidade de energia externa (Qn) dos neurónios. Assim a estrutura do sistema nervoso servirá o propósito de conter as quantidades de energia externa de entrar nos neurónios livremente enquanto que a sua função servirá o propósito de as descarregar.”. Digno aqui de nota, para a nossa sensibilidade, estão duas questões. A primeira prende-se com a intuição de Freud sobre a violência que o mundo externo teria sobre o frágil sistema orgânico, e a sua consequente necessidade de defesa e adaptação. A segunda com a ideia de descarga desta mesma energia. Apontamos aqui para as ligações com as noções de gestão quântica da informação orgânica e, adicionalmente com os próprios processos de descarga/troca energética com a terra, verificando, por exemplo, conceitos como os de grounding, e suas mais valias técnicas e teóricas potenciais para o pensamento e teorias psicanalíticas. Não entraremos em detalhe sobre estas noções dado que isso nos afastaria irremediavelmente do nosso propósito de hoje.
Se dúvidas tivéssemos sobre a materialização das suas ideias, Freud indica mesmo a fragilidade e falha sistémica orgânica como limite dizendo (p.306) “que todas as especificidades de natureza biológica têm os seus limites à eficiência, para além dos quais existirá apenas a falha.” Aqui anotamos uma vez mais a intuição fina de Freud sobre a ideia de impacto real, de acordo com leis da física que nesta altura só mesmo a sua intuição poderia vislumbrar, que a informação ou energia poderia ter sobre a mente-corpo. Prossegue Freud dizendo: “Descobrimos que o sistema nervoso se encontra estruturado de tal maneira que as principais Qs (quantidades de energia) externas são vedadas de not e, ainda mais, de psi: pelos ecrãs que se encontram nos terminais nervosos, e pela conexão meramente indireta entre os neurónios tipo psi e o mundo externo. Há algum fenómeno que possa ser levado a coincidir com o fracasso destas estruturas? Este, penso, designa-se dor.” (p.306-307). A ideia que se apresenta, segundo podemos perceber, é a de dor como livre circulação do fluxo Q no organismo, isto é, de quantidades enormes e livres de energia do mundo externo que entram em circulação no organismo sem filtros ou contenções de barreiras. É então a noção de falha do sistema em regular adequadamente as quantidades de energia às quais é permitida entrada a partir do mundo externo, falhando a sua transformação ou filtragem, não sendo possível, adicionalmente a sua canalização apropriada para os devidos locais no organismo. Resumimos: falha do sistema na contenção de Q: dor ou sofrimento.
Outra discussão interessante sobre este ponto seria a de que dor é sintoma. Nesse sentido, um processo secundário. Poderíamos então articular que Freud aqui apresenta uma ideia de etiologia da doença. Sentimos como extraordinário que Freud vincule a incapacidade de gestão no fluxo de energia ao fracasso dos elementos do sistema e, para além disso, aos sintomas físicos de que o organismo agora não está a funcionar adequadamente ao apresentar indícios de doença. Novamente observamos claramente como, na mente de Freud, desde o início, está a ideia de articulação mente-corpo, materializada em termos de fluxo de energia e quantidades de energia, sendo estas reguladas através dos processos mentais impactando diretamente no processo orgânico, e vice-versa. Ouçamos então Freud, clarificando: “Inferimos que dor consiste na irrupção de enormes Q’s em psi.” (p.307). Mais uma vez temos uma afirmação direta ligando quantidades de energia que circulam no organismo, nos neurónios responsáveis pela troca de energia e de informações entre órgãos e elementos orgânicos, e dor. Na lógica de Freud, existe a associação entre grandes quantidades dessa energia e a ausência de controlo ou capacidade reguladora do organismo para conter e modular essas grandes quantidades de energia, produzindo, assim, a dor como sintoma desse processo regulador em falha.
O problema em fixar esta pressuposição, a hipótese da tempestade eléctrica - the lightning strike hypothesis, como o próprio Freud a coloca, é a de que teríamos que assumir como verdade que grandes quantidades de energia livremente circulante criam um caminho privilegiado para a dor. Parece-nos que aqui Freud carece de se encontrar a articular a sua intuição em 1895, não sendo capaz de tirar boas consequências da sua própria lógica de raciocínio. É provavelmente verdade, como observamos tantas vezes na práctica clínica, que é uma grande quantidade de energia do mundo externo, seja um único evento traumático ou um cenário cumulativamente traumático, que cria um evento de tempestade eléctrica que abre caminho para a dor que circula, fisicamente em alguns casos, ou em termos psíquicos, facilitando uma certa tendência de pensar, sentir e pressentir a realidade através de um tipo específico de lente. Seguindo a lógica de Freud, poderíamos propor aqui o que sabemos hoje da teoria e prática psicossomáticas e da medicina e mecânica quânticas. Assim, como Robert Stolorow tão elegantemente coloca, o trauma não é o evento em si, mas a ausência de uma relação que o contextualiza e na qual este pode ser contido e elaborado.
A física pode ajudar-nos, dado que temos hoje tecnologia que nos demonstra já que a dor surge da ausência de fluxo de energia/informação adequada no organismo. Restabelecendo o fluxo, a dor desaparece. Então Freud estava parcialmente certo na sua intuição quântica. É verdade que as grandes quantidades de energia, como um fluxo de um raio numa tempestade eléctrica, criam um caminho de tendência de informação no organismo. Mas a dor não é o produto disso. A dor é uma consequência a que aqui podemos chamar de terra queimada que é deixada pelo raio. A terra arrasada está morta ou profundamente privada de força vital e precisa mobilizar recursos para se revitalizar. A dor é exatamente o que acontece quando o raio ocorre e a vida não tem mais condições de existir naquele território. Então, novamente, não é a terra queimada que é o caminho para a dor chegar. Continuamos no seguimento de Freud, ainda que na sua contra-intuição. A terra queimada é o lugar onde a informação não flui mais, ou flui insuficientemente. O suficiente para que o organismo marque o território como uma terra onde existe uma emergência e que precisa ser salva, mobilizando recursos para alcançar exatamente isso. Essa marcação é obtida pela sinalização de dor. Até porque todos sabemos que na necrose a dor se encontra ausente. Mas, enquanto há Vida, ténue mas existente, persiste a dor e o sofrimento, talvez, como enuncia Christopher Bollas, na esperança da emergência de um salvamento: objecto transformacional.
Freud encontra uma forma de explicar o impacto que as forças ambientais têm sobre o sujeito. Utiliza a perspetiva de Newton, vigente à época, sobre os corpos e forças geradas pela sua interação para introduzir que “não há dúvida que o mundo externo é a origem de todas as maiores quantidades de energia, assim, de acordo com as descobertas da física, ele é constituído por poderosas massas que estão em movimento violento e que transmitem o seu movimento.” (p. 304) Relembramos novamente que estamos em 1895 e que a teoria de Newton era vanguarda científica à altura. É interessante acrescentar que Einstein, nesta altura com apenas 16 anos de idade, poderia apenas pensar o que seria o tempo e o espaço. E, acima de tudo, se seria verdade aquilo em que se acreditava sobre Física da época: que o tempo era absoluto e, assim, também o espaço o seria. Apenas alguns anos mais tarde Einstein vem colocar por escrito os seus questionamentos científicos sobre estes princípios organizadores, questionando não apenas a matéria de que são feitas as coisas, os corpos e suas forças, mas também o absolutismo e os pressupostos que a própria teoria à época utilizava para os estudar. Materializando, já não seria uma questão de f = ma mas uma questão mais profunda e essencial. A energia seria intertransmutável com a própria matéria. Na sua essência mais simplificada, e=mc^2 coloca ao mesmo tempo em causa o determinismo do tempo e a dualidade da própria matéria de que é feita a energia. Neste sentido devolvemos aqui o questionamento, enquanto Psicanalistas, sobre a intertransmutação da matéria e energia. Ou seja, pensamento como criador da realidade. A Psicanálise em cena num ambiente quântico por excelência. Porque somos responsáveis por assumir as consequências do que pensamos e do que entretanto já a ciência comprovou em termos das regras que organizam a realidade. O pior que nos pode acontecer enquanto psicanalistas e pensadores científicos é assumir como pressuposto de origem do nosso pensamento clínico ou teórico que o setting psicanalítico, ou qualquer setting psicoterapêutico suspende as leis organizadores da realidade já descritas e provadas.
Recordemos que, em 1895, o visível de Newton ainda se sobreponha ao invisível de Einstein que ainda não tinha sido proposto. Isto é, as grandes massas e as grandes forças que as movem eram e serão sempre incontestáveis porque se vêm tão bem quanto uma maçã que cai de uma árvore. Einstein introduz o primeiro salto quântico para o invisível. Matéria é energia. Tal como Freud, Einstein pagou caro o seu salto para o invisível. Aquilo que aqui propomos é que nos contextualizemos a Freud em 1895. Pensemos no seu desejo de pensar a mente e a energia que nela circula, na sua vontade de encontrar um design para o funcionamento mental. Que mente tinha Freud na cabeça quando a começou a pensar? Que design seria este? Sendo este o tempo em que Newton era incontestável, como constituir então um design não-newtoniano de mente? Como assumir em 1895 um design de mente quântica?
III. O Real e o seu Lugar na Psicanálise
A psicanálise tem historicamente dado mais relevância à descrição do mundo interno do que, propriamente, à descrição de como esse mundo interno interage ou se mistura com o mundo externo. Sobre o mundo da realidade, mas também dos objetos externos, sabemos histórica e teoricamente pouco sobre o que acontece quando a mente se projeta para fora. Podemos então questionar qual o lugar do inconsciente intersubjectivo? Pode colocar-se esta questão de outra forma. Até agora do ponto de vista teórico podemos sempre estar descansados quanto ao lugar das coisas em psicanálise. Elas estavam dentro do sujeito: funcionamento mental, representações, objetos, relações de objeto, etc.. A partir do momento que começamos olhar a subjetividade e o encontro entre sujeitos, encontramos algo mais complexo do ponto de vista do nome que podemos dar ao lugar das coisas. Desta forma, a partir do campo intersubjectivo e da sua teorização como encontro de duas subjectividades, podemos pensar onde este encontro se dá e que impacto terá esse encontro naquilo que conceptualizamos como Real.
Será que podemos continuar a afirmar com certeza que o inconsciente é um processo interno? Ou o inconsciente transcende a própria pele e projecta-se para fora de nós enquanto sujeito? Ou o que consideramos ser “fora” é afinal um “dentro mas de outra qualidade energética”? Que consequências teóricas poderiam ser ou serão retiradas quando nos começarmos a debruçar seriamente sobre as respostas a estas questões? Esclarecemos o que queremos dizer numa mera experimentação mental fazendo interagir a psicanálise com a alguns princípios organizadores da física e mecânica quânticas. Ouvimos muitas vezes na formação psicanalítica que “Aquilo que é recalcado é o afecto e não a sua representação.”. Desta forma podemos enunciar, ligando Psicanálise e a ideia de mente quântica, que o que circula livremente na mente e constitui energia e informação é o conteúdo afectivo da memória e não a sua contenção/limites/forma, i.e., a sua representação. Assim os neurónios (ou as estruturas de canalização energética) disparam energia/afecto/informação e retêm a sua representação. Isto é, a sua estruturação ou programação orgânica, como organizador orgânico da energia. Vem-nos aqui à cabeça a ideia da portagem que classifica os veículos e que lhes cobra uma taxa de acordo com critérios pré-determinados. A mente (a defesa) age então sobre o afecto, mantendo a representação íntegra e estruturada. Perguntamo-nos se apenas com a passagem de energia/informação pela estrutura esta pode ser alterada? Desta forma, e como consequência desta ligação, chegamos à ideia, que para além da memória celular, neuronal, memória orgânica, adicionamos a ideia que para Freud se aquilo que circula é o afecto, portanto não retido na barreira de contacto intercelular, aquilo que ficará exposto à filtragem, resistência ou grau de facilitação da barreira de contacto é a representação e não o afecto. Assim, aquilo que é guardado/retido na célula será, segundo a integração teórica de Freud, a representação com alguma carga, informação ou programação energética. É a ideia de isolamento na medicina contemporânea, onde uma doença fica retida e isolada numa determinada região do corpo sem contacto com aquilo a que lhe deu origem e sem fluxo e comunicação com o resto do organismo circundante. É o conceito de representação da experiência na memória celular. Representação ela própria vítima da defesa porque desligada do afecto que lhe deu origem. Ligamos aqui também o conceito de defesa com o de facilitação celular ou de resistência à passagem na barreira de contacto. Assim se compreende como determinado estímulo orgânico possa convocar no corpo e na mente a experiência (afectiva ou sensorial) que lhe deu origem perfeitamente isolada da sua representação. Após esta reflexão, seremos nós tão rápidos da próxima vez a interpretar algo como interno ou transferencial a um paciente nestas condições? Será que existe muito mais Real do que gostaríamos de admitir misturado na nossa Psicanálise? Será o Real o que vemos? O que pensamos ver? Ou, o que podemos ver?
Costumamos usar termos como “verdade do sujeito”, muitas vezes sem pensar no que isso significa para nós também. Isto significa que para nós enquanto sujeitos o outro é livre de fazer verdade, de a construir a seu belo prazer a partir do seu processo projectivo, da sua dita verdade dos factos. Não questionamos isto na clínica. Mas parece que do ponto de vista teórico encontramos muitas vezes dificuldades quando queremos pensar ou esquematizar conceitos vizinhos da verdade como é o caso do conceito de Real. Vamos ver se consigo esclarecer. Enquanto pensamos do ponto de vista clínico que o que interessa é a realidade que a pessoa apresenta, independentemente do julgamento de verdade ou mentira sobre essa narrativa, esquecemo-nos de que, estando nós do outro lado, existirá também a nossa realidade que a meio caminho se encontrará com a verdade do outro e criará o campo relacional. Dir-se-á campo intersubjectivo, ou até, dado tempo e espaço suficientes ao encontro, um inconsciente intersubjectivo. Deixemos para já o problema da Tópica do inconsciente intersubjectivo para nos focarmos na problemática do real, possível e provável. Diz-nos a física quântica contemporânea que aquilo que é possível torna-se real. Ou seja, aquilo que é projectado, energeticamente diria a física, na mente encontra no espaço um equivalente quântico. Isto é, uma certa forma de existência física em potencial. Para muitos investigadores é já consenso científico que a matéria de que são feitos os pensamentos terá que ser estudada à luz da mecânica quântica. Porquê? Então o pensamento e a mente deixa de ser do âmbito da psicanálise? Talvez não. Talvez possamos pensar ao contrário. Talvez a Psicanálise, que pensava viver numa vivenda isolada numa terra que ninguém conhecia, comece agora a encontrar vizinhos que se começam a instalar ao seu lado. Em breve será uma pequena aldeia… Um dia, até, talvez uma cidade…
Neste sentido, e tal como estamos habituados a pensar, um pensamento não tem matéria. Não é feito de nada. Não, o pensamento não deve ser pensado como sendo do âmbito da física. Não é objecto das ciências exactas. É desmaterializado. É, diríamos no âmbito mais preciso, uma forma particular de energia. Aqui reside o problema. É que para a física quântica, também nós o somos. Também os nossos corpos, aquilo que os compõe, tal como também a própria realidade física, são energia. Materializadas e, ao mesmo tempo, por breves momentos no tempo, tão desmaterializadas como o próprio pensamento. Para a mecânica quântica tudo pode ser visto a luz da teoria das probabilidades. Um electrão que pode estar em determinado lugar num dado tempo e que, no momento seguinte, pode deixar de estar. Podemos pensar logicamente que este “deixar de estar” se prende com estar num outro lugar mais ao lado. Não está aqui em Lisboa, está mais ali em Sintra. Mas não. O que a mecânica quântica nos quer dizer é que o electrão, dotado de massa física, cessa mesmo a sua existência nesta realidade. Deixa de existir, para que no momento seguinte possa reaparecer novamente, retomando o seu lugar nesta realidade. Que semelhança com o pensamento. Que semelhança com aquilo que experienciamos ser a nossa realidade, interna, afectiva, relacional. Para a física quântica, campo intersubjectivo, parece-nos, será sempre uma forma particular de energia projectada num espaço de probabilidades. Porque qualquer estado da matéria emite ondas, estados vibracionais, sinais eletromagnéticos. No caso dos organismos mais complexos, nós, seres humanos, entre outros, a intencionalidade permite organizar esta energia. A energia projectada passa a deter ordem, vector, organização vibracional. Uma forma de inteligência organizada e lançada para fora do corpo, sob a forma de campo bioeletromagnético (ou entrelaçamento quântico) que transcende a célula, a comunicação entre células, entre órgãos, entre sistemas orgânicos e, até, o próprio limite da pele. Porque se admitimos a existência do campo intersubjectivo é porque antes dele lá existe o campo subjectivo. Talvez este seja o nome que damos a este bioelectromagnetismo.
IV. Reflexões finais
Na secção do Projecto dedicada ao enquadramento da Biologia, a preocupação com a demonstração teórica e sua integração faz com que Freud assuma as suas limitações e frustrações à data de 1895. Diz o autor, citando: “Qualquer pessoa que de alguma forma esteja envolvida cientificamente na construção de hipóteses, só começará a levar as suas teorias a sério se as mesmas conseguirem ser encaixadas em conhecimento já existente em mais do que uma maneira diferente e se conseguirmos adicionalmente mitigar a sua arbitrariedade na relação com este. (…) Em todos os sentidos, morfologicamente, isto é, histologicamente, nada é conhecido que suporte esta distinção.” (p. 302). Aqui Freud referia-se à sua distinção entre classes de neurónios permeáveis e impermeáveis e à ausência de sustentação técnica e laboratorial desse facto. Depois da enunciação do medo, Freud enuncia o seu desejo: “O mais satisfatório, claro, seria se o mecanismo que procuramos, ele próprio emergisse de uma qualquer estrutura biológica primitiva.” (p. 302). Percebemos aqui a intenção de organizar uma teoria que ligue a realidade orgânica e a psíquica. Percebe-se também aqui a frustração do autor de se encontrar em 1895 e de ter que assumir as limitações da ciência da sua época. Podemos aqui desde já questionar por que razão Freud organizou toda a sua teoria até aos anos 20 e 30 do século XX e, ainda assim, não retomou sua premissa inicial, o seu desejo teórico originário.
Lendo O Projecto de 1895 existe uma névoa que paira sobre as nossas cabeças. Esta é a sensação de que se Freud se lê-se em 1950 ou 60, ou mesmo hoje no século XXI, retomaria o seu Projecto para uma Psicologia Científica. Porquê? Porque para a nossa sensibilidade, que o lê-mos no século XXI, existem passagens demais em que o autor confirma as suas limitações, expressa as suas frustrações, enuncia as suas intenções e propõe constantemente ao leitor que teste as suas teorias e que as materialize, teórica, técnica e laboratorialmente. Não deixa de ser por isso irónico que, ainda hoje no século XXI, ouçamos expressões e questionamentos tão originalmente freudianos como os do Professor Juan José Ibañez que nos propõe a definição materializada de mente ou mesmo do sacralizado inconsciente. Porque apesar de ser essa intenção inicial freudiana, e de se ter frustrado pela ciência da sua época e se ter refugiado numa abstração possível conceptual e desmaterializada, os seus seguidores, bons leitores de Freud, esqueceram a sua original intenção. Relembrando que na citação anterior Freud deixa claro que o seu desejo é o de: "fazer teoria de uma forma séria com o nosso conhecimento (…) a partir de mais de uma direção (…) para além da arbitrariedade” (p. 302). Não devemos esquecer, como pensadores humanos que somos, que estamos limitados social e culturalmente. Pela forma como o mundo se vê. Pela ciência que se produz. Pelo que o Mundo considera ou não “ciência”. Pelas formas como essa ciência nos diz que a realidade funciona e, já agora também, pelas formas como a realidade não funciona. Mais, como é impossível que ela funcione. As leis da realidade são intransponíveis…
Não devemos esquecer que também Freud foi um pensador humano e que também ele cresceu e viveu, à época, com leis intransponíveis de uma realidade que hoje já não existe. Entretanto vivemos as revoluções cientificas do século XX e inícios do século XXI. A realidade de Freud desapareceu mesmo à frente dos seus olhos e a nossa, com os avanços científicos que virão, também desaparecerá, para se transformar em algo mais, com mais leis e, acima de tudo, com outras leis que parecerão também elas, ao seu nascimento, intransponíveis.
Resta saber, se Sigmund Freud regressasse hoje, numa noite de nevoeiro, se para ele seria mais importante ser freudiano ou psicanalista. Isto é, se para Freud, levantando a cabeça e olhando em volta no século XXI, encontraria mais verdade numa Psicanálise abstrata e conceptual, incapaz de se materializar e de se relacionar com o mundo, suas leis de funcionamento a todo o momento descobertas e re-descobertas, ou se se reencontraria com o seu Projeto inicial e retiraria mais gozo de comunicar com a Física, Medicina e Bioquímica contemporâneas, retomando as suas ideias originais de condução, facilitação, fluxo energético, materialização e expandindo-as à velocidade da ciência dos tempos que correm.
O que aqui propomos é simples. Os matemáticos sabem que antes do 1 vem o 0. O 0 transcende a ausência e é já presença de algo. Até porque mesmo hoje a Física prova que o vácuo não é vazio. Consequentemente, podemos perguntar-nos, em Psicanálise, acima de tudo numa Psicanálise interessada no mundo que a rodeia, o que vem antes da 1ª Tópica? Não será isto que Freud tenta constituir no seu Projecto? Uma Tópica Essencial, uma Tópica 0. Onde se ancora e de onde parte a 1ª Tópica. Para além do corpo é aquilo que nele flui: afeto/informação/energia. Talvez a única forma de comunicar em Psicanálise seja a de encontrar a sua ligação ao mundo que nos rodeia e de fazermos as questões que as outras ciências nos veem fazendo e que viemos negando ou evitando. De que é feito o inconsciente? Qual é afinal e onde está o objeto de estudo psicanalítico por excelência? Qual a nossa Tópica essencial, a partir da qual se articulam a 1ª e 2ª Tópicas freudianas, objectos internos, etc.? Onde está a memória, a representação? Como comunicam as memórias umas com as outras? Por que mecanismos e vias se transmite a informação e energia presentes naquilo que designamos de processo transferocontratransferencial e projectivo? Entre muitas mais que poderíamos sonhar agora elaborar.
Será que precisamos de fugir de Freud para construir uma psicanálise viva e em relação com as suas ciências contemporâneas? Ou será que precisamos que Freud nos venha cá novamente dizer aquilo que já deixou claro em 1895 e dar permissão para nos assumirmos psicanalistas e tentarmos com os instrumentos e recursos que temos hoje re-escrever e re-pensar o seu Projeto para uma Psicologia Científica? Penso não ser necessário fugir de Freud através de uma Psicanálise que apenas substituí conceptualmente, e em abstracção, aquilo que está dentro de nós ou, em salto em comprimento, para uma Psicanálise Relacional e/ou Intersubjectiva que se petrifica de pensar nas hipóteses da materialização daquilo que advoga. Poderíamos questionar, por exemplo, só para evocar arrepios em alguma parte de nós próprios, de que massa é feita, afinal, o campo intersubjectivo? Sim. É com este tipo de questionamento originalmente psicanalítico que voltamos ao Projecto de 1895. Penso que não precisamos da fuga de Freud nem da sua desvalorização conceptual. Precisamos de re-ler e re-pensar a Psicanálise, toda ela por inteiro, e questionarmos seriamente tudo o que lê-mos na sua relação com os nossos corpos, energia que neles flui e energia que deles transborda, e retirar consequências destas re-leituras, técnicas, teóricas e clínicas.
Agradeço-vos permitirem-me pensar convosco e espero que tenha promovido pensamentos novos ou, pelo contrário, provocado reações de rejeição intensas. Com a minha satisfação de saber que, tanto umas como outras, são sinais da Psicanálise como ciência a desenvolver-se! Aquilo que é preciso é ousar pensar. Muito Obrigado.